O papel

O papel

(parêntesis um)

Estou ciente da responsabilidade de não deixar mal quem me convida à escrita, mas o meu espírito livre levou a que não perguntasse o estilo, tema ou mesmo o limite. Senti-me ainda mais honrado por isso mesmo: pelo respeito pela minha vontade de escrever, pelo respeito pela minha liberdade de escrever e pela coragem que isso representa. Bem haja Gil! Agora,
abram-se as portas do céu ou talvez do inferno. O leitor julgará!

(parêntesis dois)

Este texto não vai ter interesse nenhum! Ficam desde já advertidos aqueles que pensavam que iam encontrar um texto sobre os grandes assuntos do dia e avisados aqueles que julgaram que estas palavras seriam um lavar de alma, um eco das suas próprias palavras pensadas. Não será nada disso, mas por via das dúvidas, fiquem um pouco mais por cá, nem que seja para me arruinar com críticas furiosas, ditadas pelas pontas inquietas dos vossos dedos. Aos que ainda estão curiosos e interessados, mantenham-se atentos, esta ainda não é a vossa paragem.
(o que realmente interessa ler (ou talvez não))
Haverá palavra que suscite tanta curiosidade como a palavra papel? Estou certo que muitos encontrarão vocábulos mais apetecíveis do que este, e até, quem sabe, poderão encontrar palavras com mais profundidade e valor. Para mim, apenas posso justificar a minha escolha pela palavra pela qual tenho uma devoção quase religiosa pela palavra “papel”.
Um papel pode ser uma folha vazia, repleta de inúmeras possibilidades de concretização. Pode surgir um desenho, um poema, um avião, se dobrado da forma certa. Pode ser acendalha de uma lareira acolhedora, ou o início de uma profunda devastação. Pode ser a palavra de amor num verso de um poema, ou a carta seca e apática de despedimento; pode ser um diploma de curso, ou de forma mais tétrica, um edital de óbito, colado na janela de um café qualquer.
Parece-me a mim que o papel é uma extensão do meu próprio braço, da minha própria boca, que como estes últimos, tanto dá vida como mata.
Mas a dimensão desta palavra não fica por aqui. Pode ser um desempenho teatral de um ator que abraça um “papel” com a sua própria vida e deixa que este lhe entre pelas entranhas sempre que sobe a um palco. Também podemos tentar discutir o “papel” que o estado deve desempenhar na sociedade, e ver a Assembleia da República a partir-se em dois ou três pedaços, sempre que o assunto é abordado. Podemos até discutir o “papel” da mulher na sociedade, e perguntar o motivo de receberem menos dezoito por cento para desempenhar a
mesma função de um homem, ou perguntar qual o papel daqueles que se acham magnânimos por permitirem que a mulher ocupe um lugar que é naturalmente seu.
A palavra tem também dimensões mais simples da palavra, como o “papel” de parede, de cozinha, de embrulho e papel para outros fins. Há também o “papel” que nos paga as coisas, e que depois do dia vinte começa a fazer falta. Mas esses usos de “papel”, meramente serviçais, utilitários ou decorativos, pouco me interessam.
Há, no entanto, um outro “papel” que realmente me preocupa interessa: o “papel” que um escritor deve ter nesta sociedade de tempos fugazes, em que nada dura mais do que uma linha, e um “gosto” é considerado uma reflexão profunda sobre qualquer que seja o assunto.
Gostaria de pensar que o “papel” de um escritor é de dar à sociedade um tempo extra de reflexão; um tempo extra que permita à sociedade ter diferentes perspetivas sobre as coisas e que, de certa forma, não lhes diga apenas o que querem e gostam de ouvir, mas exatamente pelo contrário, por lhes dar murros no estomago, e lhes diga, independentemente de tudo, a verdade dos dias e aquilo que precisam de ouvir. Há na escrita esta obrigação, utópica é certo, de fazer o mundo um pouco melhor, letra a letra, palavra a palavra. Há em mim essa inquietude, este desconforto perante o que vejo, que me impede de estar calado e me impele a uma intervenção cívica.
Se leram até aqui, tenho muito pouco com que me preocupar, pois, apesar dos avisos, das leituras apressadas que induzi, não se deixaram enganar. Esta é finalmente a vossa saída. O vosso “papel” como leitores está cumprido, o meu, no entanto, ainda está muito longe disso,ainda há muito “papel” para escrever!

@EscritorJoaoCunhaSilva

Texto escrito a convite de Gil Nunes, jornalista e escritor 
@GilNunesWriter

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