Diário de um vagabundo chamado Billy Tord ou viagens ao sótão panorâmico 1

Diário de um vagabundo chamado Billy Tord ou viagens ao sótão panorâmico
João Cunha Silva

19 de Janeiro de 1973

Dizem que não necessitamos de nada que não seja dado pela natureza. Acredito mesmo que para matar o tempo livre começamos a inventar coisas supérfluas, só para nos entretermos e fugirmos daquele medo ancestral de estarmos sozinhos. A verdade é que não nos suportamos. Seria cansativo e odioso conseguirmos viver connosco próprios. A dependência dos outros é assim a droga mais viciante, mesmo que o outro esteja lá apenas de corpo presente, sem se mexer, como uma jarra com plantas artificiais e para sempre mortas no seu interior.

Detestamos também a sensação de termos que lidar com as nossas falhas e preferimos sempre que seja alguém a apontar, uma a uma, essas mesmas falhas. Penso mesmo que se não fossem essas anormalidades comportamentais, passaríamos pela tempestade dos dias sem que notassem a nossa presença.

Aprendi a estar sozinho. Continuo a aperfeiçoar essa arte no meu dia-a-dia, mas isso já não chega. Acho mesmo que depois de aprender a viver comigo mesmo, suportando todas as minhas falhas e as minhas anormalidades, que tenho algum pudor em abdicar, nem que seja um milímetro, daquilo que sou. Já não me dou ao outro, nem quero. Já não tenho essa necessidade e de olhos bem abertos, escolho cada passo que dou. As escolhas que fazemos transformam-nos. no entanto nunca o fazem por completo. Não tenho muita certeza da afirmação anterior, mas quero crer que as escolhas somos nós e já o éramos, mesmo antes de as fazer.

Olho lá para fora e vejo ou tudo parado, ou tudo num movimento demasiado frenético para que eu me possa intrometer. Fico de fora, vejo como as coisas correm. Há alturas em que me vejo lá no meio, mas fico sempre um pouco tonto e recuo uns passos e escolho a distância certa para observar mais do que participar. O mundo cansa-me; acho que não consigo fazer as mesmas coisas sempre, sempre. No entanto, faço sempre as mesmas coisas e corro atrás da rotina de que tanto fujo. Instala-se o medo e procuro saídas para ter de começar de novo. É mau para a conta bancária; é mau ser errante e ao mesmo tempo pagante de contas fixas. Há mesmo becos sem saída e agora chego à conclusão que já sabia que não tinham saída. Mas fiz como faço sempre: dei um passo em frente. Agora estou no meio de uma rua com múltiplas saídas, todas por pavimentar que exigirão, por certo, trabalho extra, coisa que não combina muito bem com a minha preguiça de fazer aquilo que devo e que procura sempre outra coisa para fazer. Como é que os outros fazem? Sujeitam-se diariamente ao incontornável destino ou têm mini-revoluções como aquelas que me ocorrem assim que abro os olhos pela manhã. Dias seguidos de cabeça baixa, de jugo nas costas em passo de condenado e depois momentos de alguma euforia e de pulmões cheios de ar. Há coisas estranhas com que já me habituei a conviver: a minha capacidade para fazer explodir oportunidades e a minha capacidade de as criar. Não sei de qual das duas me saio melhor, mas a taxa de sucesso das duas revelam talento inato para qualquer uma. É o mal de poder ser qualquer coisa: é ser coisa nenhuma. É o que eu sou!

Sou assim coisa nenhuma que poderia ter sido tudo. Mas, mesmo não sendo nada, consigo ser tudo, todos os dias. Acho que me contento em ser nada. Acho que ser nada que já é ser alguma coisa. A vantagem de ser nada é que não precisamos de nada para ser nada e eu estou rodeado de nadas, que me pesam muito. Li num livro que para atravessar o rio é preciso tirarmos tudo o que nos pesa. Primeiro há uma parte lógica que é não conseguir nadar com o peso das coisas que seriam por certo empecilhos à travessia; segundo porque a vida atulhada de tralhas e tretas, é literalmente mais pesada e o peso de cada passo é multiplicado, múltiplas vezes. Preciso mesmo de tirar esses pesos a mais. A alternativa é pouco risonha. Há que tirar camada a camada, até sentir que caminho na lua, sem a gravidade a pesar em cima. Despir-me de tudo que não preciso. Será esse o caminho. Há coisas que não consigo tirar e também não quero, pelo menos para já. Acho que consigo atravessar o rio sem as abandonar na margem.

20 de Março 1973

Não encontro outro caminho. Os dias repetem-se e de novo, carregado com tudo aquilo que devia interessar, mas que no meu íntimo sei que não passam de distrações momentâneas, maquilhagens emocionais, que para nada servem. Ao acordar, senti que algo estava prestes a acontecer: uma ansiedade fisicamente demonstrada pelo batimento cardíaco um pouco mais acelerado, uma impaciência injustificada…inquietação, pata de cão no chão que antecipa um terramoto qualquer.

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