Agora conto eu… o realismo ou a busca da utopia.

Agora conto eu… o realismo ou a busca da utopia.

PONTO PRÉVIO
O texto que se segue foi escrito antes dos atentados de Paris, perante os quais tudo parece insignificante e de importância duvidosa para ter lugar numa crónica. Senti-me humanamente atacado, senti, mesmo no conforto da distância, que o alvo também fui eu e os meus. A esses terroristas, escroques, não lhes destino nem mais uma linha, dando-lhes o fétido reconhecimento que tanto procuram. A minha resposta é recusar-me a alterar a minha vida, submetendo-me à tortura do medo. Feito o ponto prévio, aqui vai o texto que preparei para esta crónica.

Em alguma fase da sua vida todo o ser humano é confrontado com a escolha entre o realismo e a busca da utopia. O caminho que escolhemos nesta bifurcação reflete a forma como vemos o mundo e agimos sobre ele. Se por um lado encontramos a realidade nua e crua que nos lembra as nossas imperfeições, limites, falibilidades e impossibilidades, pelo outro lado há o sonho e a busca do aparentemente impossível, aparentemente pouco razoável e até arriscado, que nos faz quebrar barreiras e nos leva a superar o que pensávamos serem os nossos limites.
Isto vem a propósito de nos últimos anos termos passado a falar “financês”. Todos se tornaram proficientes nesta língua e o discurso, desde o político até à conversa do café, ganhou a dimensão de uma folha de “excell” com que decidimos a nossa vida. Por ofício, sei bem dos benefícios do multilinguismo, mas confesso que não sou muito apreciador deste tipo de língua. É que o “financês”, como qualquer outra língua, tem uma cultura subjacente, uma forma de ver o mundo, uma forma de agir sobre as coisas. Sempre que um Ministro das Finanças tem mais importância do que o Ministro da Economia, eu fico preocupado; sempre que o mesmo tem muito mais importância do que um qualquer Primeiro-Ministro, para além de preocupado eu fico aterrorizado. Tudo isto é culpa do “financês”.
A cultura do “financês” implica a derrota da política, aliás implica a sua morte. Pois a política é conseguir os meios para fazer aquilo em que se acredita e possa trazer uma melhoria para todos; o “financês” é saber o que fazer com as moedas que se tem no bolso. Há toda uma diferença.
Com o “financês” não se entende que o sistema de educação dará sempre prejuízo e que por muito que pensem que os ”gastos” vão diminuir com turmas de 26 ou 30 alunos, ou com menos professores e estes, cada vez com mais horas ou turmas, a ”fatura” (os apreciadores do “financês” apreciam muito esta palavra!), sairá bem mais cara, pois a qualidade diminuirá e terá de existir sempre medidas de remediação, que algum privado, cobrará sempre mais caro.
De igual modo, ninguém acredita que o SNS pode dar lucro, isto é, ninguém a não ser os falantes de “financês”. Os falantes do “financês” podem até anunciar que cada português terá o seu médico de família, depois têm de lembrar o Sr. Doutor para se despachar a atender os seus 2500 pacientes, esquecendo-se que mesmo assim, cerca de 10% da população nacional não tem médico de família. Eu saberia resolver o problema à moda do “financês”: abriria a folhinha do “excell” e distribuía pelos médicos existentes a restante população. “Não dá 2500? Então com 3000 por médico ficaria tudo resolvido!” Tretas!
A cultura do “financês” tem também algumas frases-chave que convém não esquecer. Passo, por isso, a traduzir para português corrente aquela que acho mais emblemática: “viver acima das suas possibilidades” – em português significa que somos a favor do imobilismo social, que não acreditamos, nem queremos a ascensão social. Significa que somos muito amigos dos pobrezinhos e por isso queremos que não deixem de existir, para podermos brincar à caridadezinha. Ah! E nada de bifes todos os dias!
O “financês” é a linguagem de quem se acomoda com a realidade, de quem se conforma. Das duas uma, ou se conforma porque pode, ora porque está bem, ora porque não quer as “maçadas” das manifestações barulhentas, ou porque acredita que consegue mudar o mundo sem mudar nada, mantendo tudo exatamente como está, isto nem sequer é utópico, é sim uma mentira descarada.

Qualquer utopia é melhor do que uma bolorenta realidade!

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