Crónicas antigas "Qual o peso das palavras?"

Qual o peso das palavras?
Será que as palavras têm peso, cor ou sabor? Existirá uma qualquer balança que avalie ao pormenor as gramas de certos vocábulos? Sabemos que abraçamos e nos deixamos acariciar por certas palavras, por nos parecerem leves, doces e amigáveis. Por outro lado, há palavras que nos põem carrancudos, maldispostos e que nos causam repulsa por serem pesadas, carregadas de ondas negativas e que parecem carregar um aroma um tanto ou quanto acre. No entanto, quer umas, quer outras, não deixam de ser aglomerados de letras com sons associados, às quais atribuímos significado e atiramos uns aos outros como beijos, ou como pedras. Há também aquelas que, disfarçadas, nos enganam, e parecem ser uma coisa e afinal quando nos batem, são outra. Ao longe parecem beijos, mas acertam-nos como calhaus pontiagudos.
Confesso que me perdi com estas deambulações e antes que avancem para outros lados da página, para uma publicidade colorida, ou mesmo uma figura agradável para lá das páginas deste jornal, façam apenas o exercício que vos peço com a palavra “humano” usada como adjetivo.
À primeira vista, quando vos qualificarem com esta palavra será fácil identificar se é beijo ou pedra. Mas será mesmo assim tão fácil? Será que o que conhecemos desta palavra, com todo o seu historial, torna aprazível e não insultuoso ser caracterizado de “humano”?
Vejamos com mais atenção: quando usamos a palavra “humano” para nos referirmos às qualidades das pessoas, queremos dizer que a pessoa é bondosa, que gosta de fazer o bem e que é sensível ao mal alheio. Se quisermos ir um pouco mais longe na definição, podemos dar a resposta pronta que “humano” é um ser racional e que se opõe à palavra “animal” que designa um ser irracional, bruto, estúpido e grosseiro.
Até há pouco tempo senti-me bem com esta distinção e para ser muito sincero nunca tinha pensado muito nisso. Usava as palavras da forma habitual, sem me aperceber que poderia a estar a cometer um erro quando dava um elogio «Tiveste um gesto muito humano hoje!»; ou quando no meio do trânsito dizia a barafustar «Que grande animal!». É o que dá não pensar muito no peso das palavras. Por vezes temos de nos afastar e olhá-las com estranheza, como se as olhássemos pela primeira vez, ou como se tivéssemos de as colocar numa entrada nova no dicionário. Convido-vos a fazer esse mesmo exercício, usando as características predominantes daquele que se assume como “humano”. A mim, deu-me isto:
Humano – (adj. Sing.) caracteriza aquele que tudo mata e destrói; aquele capaz de extinguir ecossistemas e provocar genocídios; característica de um ser dotado de comportamentos irracionais e maldosos; característica do ser capaz de provocar o caos, o pânico e a morte de outros seres, encurralando-os entre muros reais e legais, fronteiras, escarpas e mares; característica do ser capaz de assistir a todos os pontos anteriores com indiferença.
Sei que a definição que escrevi apresenta um lado negativo e parcelar da palavra e da realidade que descreve. Concordo! Mas a definição que todos conhecemos e tomamos como válida também o é. E cá para mim, estando apenas um pouco atentos à realidade que nos rodeia, temo que a minha definição sirva melhor o propósito de a descrever.
As palavras têm assim pesos, cheiros e cores. Não são é sempre os mesmos e não flutuam em direção ao que seria desejável. Há palavras que descrevem realidades ideais e que o passar dos dias tornou pesadas e vinagrentas, capazes até de nos causar reações muito “humanas” (à luz da minha definição) de repulsa e de resposta violenta.

Por isso, da próxima vez que alguém me disser que eu sou muito “humano”, não espere que sorria e agradeça. Não gosto de ser insultado. 

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