Crónicas antigas - A conspiração dos astros
João Cunha Silva
Um frio que não chegava a ser
incomodativo batia-me no rosto, despertando, um a um, todos os meus sentidos,
como se desejasse preparar-me para o que viria a suceder. O ar estava leve e
limpo e a Lua, mostrando-se ainda a medo, deixava já antever a forma sombreada
de todo o seu perímetro e futuro esplendor. Logo por baixo dela, à distância
precisa de dois polegares, dois astros capturaram a minha atenção. Pela sua
trajetória e tipo de brilho, percebi que eram certamente planetas. Um mais
brilhante e vibrante; o outro um pouco mais sóbrio e expectante. A sua posição
pouco usual parecia querer dizer-me alguma coisa e o meu olhar nunca mais se
desviou daqueles pontos da tela celeste e passou a acompanhar o seu desaparecimento
na linha de arvoredo, que no meu caso antecipa a linha do horizonte. Os
fenómenos celestes costumam aprisionar a minha atenção, mas por norma, surgem
sempre antecipados por grandes notícias ou pesquisas fortuitas na internet.
Neste caso, nada disso… apenas olhei na altura certa e no lugar certo e nunca
mais fiquei indiferente. Sei identificar os astros e constelações no desenho do
céu. Mesmo assim, não sabia ao certo que planetas seriam e por isso, qual
astrónomo de trazer por casa, recorri preguiçosamente a uma aplicação no
telemóvel e apontei para aqueles dois pontos brilhantes, situados dois
polegares abaixo da Lua. Marte e Vénus! Tornei a confirmar… eram mesmo os dois
planetas, eternos amantes. Não consegui disfarçar o meu entusiasmo e surpresa,
pois a ligação entre estes dois astros não é vazia de significado para os mais
atentos. Senti, por isso, que os astros conspiravam para me dizer alguma coisa.
Naqueles minutos em que fiquei
a observar aquele bailado de amantes arrebatados, viajei até junto deles e
sentei-me a recordar as suas histórias. Lembrei-me das vezes que me cruzei com
os seus nomes ao longo da minha vida; lembrei-me como fazem parte do imaginário
de todas as verdadeiras histórias de amor; lembrei-me dos poemas e dos textos que
lhes foram dedicados; lembrei-me do carinho que, segundo Camões, tinham por
todos os portugueses e venturosos; lembrei-me do seu filho Cupido e das datas
em que no calendário comemoramos o AMOR e vi que este encontro, afinal, não
tinha sido por acaso.
Agora, estavam ali tão perto de
mim. Percebi que eu próprio fazia parte do universo presente e passado, pois
partilhava o mesmo ar de todos os outros que, ao longo dos séculos, observaram
o mesmo céu e se sentiram inspirados para criar os seus poemas, histórias e
narrativas. Ao ver a dança apaixonada destes dois eternos amantes, iluminados
apenas pela Lua, como sempre deveria ser, sorri maravilhado ao pensar que
tinham escolhido o meu horizonte para se encontrarem por aqueles breves
momentos. Tive aí a certeza que conspiravam em meu favor.
Para mim, à imagem de Sophia
enquanto olhava o mar e as coisas simples, isto é motivo de maravilhamento, de
poesia e de inspiração. Sei, no entanto, que para aqueles dotados de um cinismo
científico, nada disto é mais do que o aproximar aparente de dois planetas
desprovidos de vida, ou para aqueles dotados de um perigoso desinteresse geral,
isto não deixa de ser uma mão cheia de nada. No entanto, são estes dois
“amantes” e nossos vizinhos imediatos nas viagens à volta do sol, que permitem
a existência de condições para haver vida no nosso planeta.
Marte e Vénus não conspiraram
apenas para o sucesso dos portugueses na descoberta do caminho marítimo para a
Índia, eles conspiraram para que toda a vida no planeta Terra encontrasse o seu
caminho.
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