…a realidade e a ficção (27/08/2015)
É cada vez mais difícil distinguir o que é a realidade do que é ficção. O que era realidade transforma-se em ficção e o que parecia ficção transforma-se assustadoramente em realidade. Para quem escreve isto é verdadeiramente um desassossego: pensamos que estamos a criar algo novo e somos subitamente acordados com a realidade, uma realidade suficientemente parecida com que imaginamos, de modo a mandar o que escrevemos para o lixo.
A ficção é a verdade assente na mentira, isto é: o possível e verosímil daquilo que simplesmente não é verdadeiro. Não tenho um crocodilo como animal de estimação, mas se tivesse teria de criar o seu espaço, teria de o alimentar, passear, e entretanto … esperar não ser comido. A imaginação só têm rédea solta até certo ponto; há sempre uma âncora que nos prende aos nossos valores e vivências e que por isso nos limitam. A ficção assenta assim em algo que apesar de não ser real, poderia muito bem ter sido ou poderá ainda ser, caso se verifiquem determinados parâmetros e determinadas circunstâncias. Não imagino nenhuma que me levasse a ter um crocodilo como animal de estimação, mas se isso acontecesse eu teria de ter todas essas preocupações, isto se quisesse que a minha história fosse aceite por um leitor, que vejo sempre como exigente. Nem sempre apliquei estes mesmos princípios ao longo da minha escrita, mas reconheço que o deveria ter feito. Lembro-me sempre daquele dia, quando numa escola, numa sessão de apresentação do meu primeiro livro “A Maria da Lua”, um aluno me perguntou como é que os passarinhos, que plantaram as flores na lua, passaram a atmosfera da terra. Bem tentei dizer que deveriam levar uns capacetes especiais, mas percebi naquele momento que deveria ter dado uma resposta melhor no texto, já no momento, foi a melhor resposta que saiu.
Sabemos que ao entrar no mundo da fábula e da ficção logo se aplicam outras regras e outras fórmulas. O ”Era uma vez…” abre-nos um portal infindável de possibilidades. No entanto, mesmo quando nos deparamos com a existência de animais falantes, ou com naves espaciais a saltar de planeta em planeta, repletas de seres estranhos de múltiplos membros e olhos a lutar ou a conviver, há sempre uma organização de base já conhecida que deverá ser verosímil e plausível de ter acontecido naquelas circunstâncias. Com Alice tudo estava bem até aparecer um coelho falante que a levou a um mundo onde toda a lógica é desafiada. No entanto, mesmo nesse mundo do faz de conta há uma ordem e regras próprias. É assim tão diferente do que que se passa no mundo real? Quantas vezes não pensamos o mesmo de costumes de povos diferentes ou mesmo de costumes de comunidades dentro do nosso país? Queimar um gato não vos parece estranho e próprio de ficção (doentia é certo!)? A realidade derrota a ficção por KO.
Na ficção começa-se sempre com uma premissa silogística “Se estamos em 2045, logo as nossas roupas serão de uma forma estranha, as nossas armas serão lasers, as nossas viagens rotineiras serão feitas de pequenos aviões e as nossas vias serão a 200 metros do chão… deixo que a vossa imaginação tome conta do resto, mas desde já aviso que estava a com a imagem da série Jetsons na cabeça. A partir daqui, toda a construção tem de fazer sentido, e quando não o faz é porque se procuram efeitos de pura ironia ou efeitos cómicos como o avental do robot da série mencionada.
A este propósito e para demonstrar que as minhas referências não passam apenas pelos desenhos animados, tenhamos em atenção os livros de José Saramago, quer o Ensaio sobre a Cegueira quer o Ensaio sobre a Lucidez. Todos começam com uma ideia “E se…” A partir daqui, de uma forma brilhante (o Nobel não é certamente por acaso) somos levados para um mundo em que se o “E se…” fosse real, não tenho qualquer dúvida que o descrito seria o mais próximo da realidade. Para mim seria exatamente assim que tudo aconteceria. Só um conhecimento profundo da humanidade permitiu Saramago chegar a esse ponto de perfeição pois é exatamente assim que nos comportamos perante aquelas mesmas situações. Antes não fosse, mas a história tem demonstrado o contrário…
O ano é de estreia é 2006 e o protagonista do filme é Clive Owen e conta com outros atores de renome como Julianne Moore e Michael Caine. O filme com o título original “Children of Men” apresenta-nos um cenário apocalítico no ano de 2027 onde as mulheres deixaram de conseguir engravidar e a humanidade caminha para a extinção. No entanto não é isso que me chamou particularmente a atenção: no filme as fronteiras estão fechadas à volta do Reino Unido, e pessoas desesperadas tentam entrar. Não sei… apenas me lembrei desta ficção tão afastada da realidade dos nossos dias. Longe de nós isto estar a acontecer mesmo agora!
©João Cunha Silva/2015
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