O Segredo Vive - João Cunha Silva
O Segredo Vive
João Cunha Silva
Aquele ano tinha sido difícil. A morte
da avó tinha-a abalado como nunca esperaria. De todos os infortúnios decorridos,
nenhum a afetou como aquele desaparecimento. A presença constante de quem amamos
nunca nos prepara para a sua ausência e agora o vazio sentia-se nas pequenas coisas.
A casa vazia, onde já não morava o marido, também não ajudava e a falta de uma
rotina diária, quebrada apenas pela apresentação quinzenal no Centro de
Emprego, apena empolava o que já de si era dramático. Mas ela não sentia falta
dos barulhos da casa, não sentia falta do sexo maquinal, nem sentia falta do
invariável silêncio, mesmo quando falava; ainda estava lá, mas tinha já
partido. E um dia, sem pré-aviso ou anúncio e também sem lhe causar surpresa,
deixou-lhe um espaço vazio no guarda-roupa e vagou-lhe duas ou três gavetas. Também
não sentia falta de estar mal sentada todo dia, fazendo invariavelmente a mesma
coisa a troco de umas migalhas mensais que caberiam numa única nota. Sentia
apenas falta da avó. Ela tinha sido a sua mãe, o seu pai, a sua companheira e
agora era apenas uma pedra de mármore fria e estática, desconfortável a
qualquer tipo de aconchego, mimo ou colo.
Dia de reunião familiar. Ainda a carne
não mostrou os ossos e já lhes desmembram os bens. Chamam-lhe “Partilhas”. Não
deixa de olhar a palavra com ironia. Para si, é claramente uma segunda morte,
em que depois da ausência física da pessoa, começa a morte dos seus lugares, a
morte do chão que suportou os seus passos, a morte dos objetos por si tocados e
que de forma magnética guardam ainda a sua memória. Provavelmente será tudo demolido
e o que sobreviver, será esquecido e atirado para um canto.
Um senhor de fato, muito bem vestido e
claramente destacado dos presentes deu sinal que se iria iniciar a leitura do
testamento.
Todos se dirigiram para a cozinha da
avó, onde diariamente brincara em criança. Entrou. A memória, acendia frenética,
com o regresso dos cheiros, aromas e sabores secretos. Parecia vê-la de costas
viradas trauteando uma melodia de outro tempo, mexendo com a colher de pau um
preparado que viria a revelar-se delicioso. Era ali, naquela mesa de tábuas
lisas, sentada naquele banco sem encosto, que estudara nos tempos de
universitária embalada por aquela voz, que ainda hoje a acompanha. Fechou os
olhos e viu o sorriso da “vó” segurando um tabuleiro com o seu lanche: café de
saco e uma fatia de pão-de-ló, inigualável, soberbo. Abriu os olhos, reparou
que a quantidade de saliva tinha aumentado na sua boca. Aquele sabor seria
irrepetível, o segredo ficaria para sempre debaixo daquela pedra de mármore
fria. A impressão de frio, trouxe-a de volta do carinho da memória, para a
realidade também gélida e tétrica.
Enquanto sonhara, a leitura do
testamento iniciara e tinha-se tornado cómica, pelo menos para si, já que os
restantes, num misto de surpresa e de raiva iam sussurrando impropérios,
mostrando expressões faciais de claro desagrado. A Avó, dotada de um incomum
sentido de humor, elaborara uma lista, no mesmo papel com que embrulhava o
pão-de-ló. Deve ter pensado que se resiste ao calor do forno, resistirá de
certeza para escrever a sua última vontade. Não deixava de soltar uma
gargalhada contida ao serem anunciados inúmeros objetos insignificantes, com
que eram presenteados aqueles que a tinham abandonado em vida e agora se apressavam
a comer-lhe os restos. Eram alfinetes de roupa, botões banais, talheres avulsos...
A ira começava a ser o sentimento geral dos presentes naquela sala e o senhor
de fato tinha cada vez mais dificuldade em ler aquele pedaço de papel. Todos
receberam o seu pequeno quinhão e a caixa de papel com a etiqueta “Herança”
colocada ao lado do leitor do testamento, ficou finalmente vazia. Lembrara-se
de todos, todos menos dela começou a pensar: nem um botão, alfinete ou mesmo
talher.
De repente foi lida a frase: «A casa
fica para …». Ao silêncio, seguiu-se um burburinho crescente, até se ouvir,
vezes sem conta, a frase: «A velha estava tola, só pode!». Barulho, confusão
total, choros e saídas intempestivas. Confirmava-se: a segunda morte, para
muitos, consegue ser mais dolorosa do que a primeira. No funeral não se tinham
ouvido choros nem gritos de injustiça, parecia um piquenique na quinta, um
evento social em que o negro era usado como cor de gala e não de luto.
Teria sido o seu nome que ouvira, não
prestara atenção. O seu olhar estava longe e ela mais uma vez permaneceu
embalada com o olhar profundo da memória, ao olhar o frasco com o nome AÇÚCAR
escrito, reconhecendo, de imediato, a caligrafia da avó.
No meio daquele alvoroço, só reparou
de verdade que era dela que se tratava, ao notar que era o centro das atenções.
O foco passou do testamenteiro para ela. Se para ele olhavam de forma
esperançosa, para ela aqueles olhares lançavam faíscas de raiva. Compreendia,
mas não podia deixar de achar justo o ato da avó. Nunca pedira nada a quem, em
vida, lhe tinha dado tanto. A verdadeira herança tinha sido a partilha dos
momentos que vivera com ela, das brincadeiras, dos cheiros e aromas da sua
cozinha, do seu avental sempre cândido, das confissões mútuas, dos ombros que
ampararam lágrimas, do colo que mesmo em adulta se recusava a abdicar. E depois
o inverso, quando o corpo da avó começou a fraquejar, de ser ela o apoio, o
colo, a mãe de quem tinha sido sua mãe duas vezes. de não sair da beira da sua
cama nos últimos dias, onde com um lenço húmido lhe hidratava os lábios, que já
raramente se abriam para falar.
Era com o sentido de justiça que aceitara
a herança, mas também sentindo alívio ao saber que nada iria ser demolido e
retalhado. Todos saíram. Iria, por certo, demorar muito tempo até lhe dirigirem
novamente a palavra. Não pensou muito nisso naquele momento, até porque pouco
lhe falavam antes. Ficou sentada no mesmo banco de madeira de sempre, olhando
sonhadora para o balcão, onde antes, a avó, juntava ingredientes secretos e parecia
fazer magia. O testamenteiro passou-lhe uns papéis para a mão com umas cruzes
onde deveria assinar. Assinou. No fim, quando se prepara para sair, o homem, de
fato caro e à medida, pegou nos documentos e deixou-lhe um envelope e uma chave
em cima da mesa. Já com a porta aberta e com um pé fora da soleira, virou-se e
disse-lhe o que ela já sabia: «A sua avó era uma mulher sábia! Tenha uma boa
vida!» Anuiu com um simples mas suficiente acenar de cabeça. A porta fechou-se
a sua segunda vida iniciara, ao evitar de forma involuntária a segunda morte da
avó. Ela viveria e não apenas debaixo de uma lápide fria.
Segunda Vida
“Querida
Neta,
Se
estás a ler estas linhas é porque tudo foi feito como desejei. Sei que até
agora a tua vida não te trouxe o que sempre mereceste. Procurei sempre que
também tivesses um ninho onde encontrasses amor, um colo quente. Não há justiça
quando se perde os pais aos dez anos e eu também perdi um filho nesse dia. Os
teus pais amavam-te, lembra-te sempre disso. Era com eles que devias estar e
não comigo. Mas todos os segundos que passei contigo foram segundos preciosos que
levo comigo e que para sempre deverás lembrar. A casa agora é tua, não podia
ser de mais ninguém. Se eu conheço alguma coisa da vida tu deves estar sozinha
nesta altura. Ainda bem. Ele não te ama, sinto-o. Quem ama entende quem ama e
ele nunca te entendeu. Agora levanta a cabeça, não no sentido metafórico (mas
também). Sei que estás sentada nesse banco da cozinha. Dei instruções para que
o testamento fosse lido nesse local, tu mais do que ninguém sabes porquê. Ao
lado do frasco do açúcar, encontra-se uma lata sem nome com uma tampa vermelha.
Dentro da lata encontras tudo aquilo que precisas, não para ser feliz de forma
instantânea (sabes como detesto essas coisas modernas, já viste o sabor daquele
puré!!) mas para estares pronta para encontrar essa felicidade que teima em
fugir de ti.
Da
tua avó, tua mãe duas vezes. Tem uma vida feliz!”
A emoção de ler e de ainda encontrar a
voz da avó na sua memória, que docemente lhe sussurrava aquelas palavras, encharcou
os seus olhos de água pela primeira vez naquela noite. Levantou o olhar para a
prateleira onde, exatamente ao lado do frasco do açúcar, tal e qual a avó tinha
escrito, se encontrava a lata de tampa vermelha. Enquanto se levantava e se
dirigia para a estante que estava à sua frente, não deixou de admirar a capacidade
da avó ler a realidade que a rodeava: sempre nas doses certas, sempre no tempo
certo, tal e qual dizia ser necessário para que o seu pão-de-ló, cuja receita
sempre se recusara a partilhar, tivesse a textura e o sabor tanto apreciado por
toda a gente. «Segredo é segredo», dizia em tom de brincadeira. «Se eu te
disser deixará de o ser….» E assim se pensou que o segredo tinha morrido com
ela, até porque no livro de receitas que escrevera ao longo da sua vida,
faltava uma página: a página do pão-de-ló.
Levantou a tampa um pouco a custo.
Estava completamente cheia de notas que logo formaram um monte considerável em
cima da mesa. No fundo da lata estavam três papéis dobrados em pequenos
quadrados, cada um numerado: leu o primeiro:
“Minha
querida neta,
Mais
uma vez vejo que estás no caminho certo e que os meus últimos desejos estão a
ser cumpridos. Só tu saberás se desejas fazer o que te peço. A tua vontade será
sempre mais forte, mas acredita em quem te conhece como conheço a textura deste
papel que escrevo. Aquele dinheiro é agora teu Só tu poderás decidir o que
fazer com ele. Mas se há alguém que algum dia poderá fazer o meu pão-de-ló és
tu, mais ninguém o poderá fazer daquela maneira. Fecha os olhos, saberás o que
fazer. Lembra-te da música que eu sempre cantava, enquanto aprendeste a
escrever, a ler as primeiras palavras, em que estudavas para os primeiros
testes e depois para os exames, em que de nervos em franja fazias a lista dos
convidados para o teu casamento. Fecha os olhos, tu tens a música dentro de ti,
tu tens o segredo, pois os ingredientes, que encontrarás no papel com o número
dois, são conhecidos por todos. A ti e a mais ninguém passo o segredo que a
minha mãe me cantou. Passarás a quem a tua consciência ditar. No papel com o
número três encontrarás os locais e as casas onde poderás encontrar os ovos e a
farinha certa. Sabes que isso não vai com ovos de aviário, nem farinha de
pacote. Encontrarás também uma lista de clientes com as respetivas moradas que
ao longo dos anos encomendaram o meu pão-de-ló. Levarás um a cada uma dessas
casas e dirás a seguinte frase «O segredo vive!» Não te preocupes que isso te
pareça um pouco estranho. Não te vão achar louca, assim que disseres que és
minha neta.
Da
tua avó, tua mãe duas vezes.”
Retirou da lata os restantes papéis, também
de almaço e abriu o número dois. Como a avó tinha dito apenas encontrou os
ingredientes conhecidos de todos, nada que se assemelhasse a uma receita
secreta. Apenas uma lista, nada mais: ovos, farinha e açúcar. No último dos
papéis, maior do que os restantes, encontrou nomes e moradas de clientes. Na
parte de baixo, separado por um risco de lápis, encontravam-se duas moradas
rodeadas com duas palavras escritas ao lado: ovos e farinha.
Fechou os olhos por momentos, mas nem
a melodia nem as palavras entoadas pela avó apareciam na sua memória. Eram
muitas emoções e acontecimentos para um dia: acabara de herdar uma casa e
ganhar um projeto de vida que recolocavam algum brilho nos olhos, mas ainda
tinha muitas pontas soltas por resolver e a melodia teimava em não aparecer. Voltou
a pôr o dinheiro dentro da lata e tapou-a com a tampa vermelha, colocando-a no
lugar de sempre, ao lado do frasco do açúcar. Pegou na carta, nos manuscritos e
na sua nova chave e foi para casa. O sonho trará uma solução, pensou.
A viagem de carro foi curta, pois
vivia a poucos minutos da casa da avó. Pelo caminho, a intermitência das luzes
dos candeeiros de rua pareciam querer indicar uma qualquer melodia, uma
cadência compassada com uma ordem definida, um sussurro luminoso ao ouvido. Mas
a melodia não aparecia, continuava enterrada no seu íntimo.
Estacionou o carro, foi à caixa do
correio e agarrou sem atenção as cartas que estavam no seu interior. Subiu de
elevador os dois andares para o seu apartamento. Entrou, pousou as chaves e as
cartas que trouxera do correio. Para o quarto apenas levou o envelope da carta
da avó com os três manuscritos no interior. Pousou o envelope na sua
mesinha-de-cabeceira de onde tirara já algum tempo a fotografia do seu casamento.
Preparou um chá de tília para adormecer mais depressa, pois apesar de estar
cansada a sua cabeça rodava sem parar de tantas ideias e coisas para fazer. Já
na cama, bebeu o chá enquanto relia a carta da avó, tocando ao de leve as
reentrâncias feitas pelo lápis no papel. O chá fez efeito mais depressa do que
pensava e rápido adormeceu, deixando a carta da avó aberta em cima da cama.
O sono, reparador silencioso do nosso
corpo, parece arranjar o que nós teimámos em estragar durante o dia e depressa
articula o desarticulado, ordena o desordenado e clarifica o que é pouco claro
ou completamente obscuro.
Acordou e tudo na sua cabeça estava
decidido, mesmo que ainda não tenha completa consciência disso mesmo. Enquanto
tomava pequeno-almoço, abriu a correspondência do dia anterior: umas contas
para pagar, ainda com o nome do marido, publicidade e por último uma com o nome
de um advogado qualquer carimbado no remetente. Eram os papéis do divórcio.
Instintivamente e sem qualquer tipo de hesitação, assinou no local marcado para
o efeito. No mesmo envelope, encontrou a indicação que iria receber a visita de
um agente da imobiliária para tratar da venda da casa. Dobrou os papéis
assinados e colocou-os no envelope RSF enviado para o efeito. Nem uma lágrima,
nem um qualquer arrependimento. Estava decidida a abraçar esta nova vida e, no
meio destas últimas horas caóticas, tudo se encaminhava para um equilíbrio que
não se lembra de alguma vez ter sentido.
Levou a carta e os três manuscritos e
partiu. Haveria de voltar para levar as suas coisas, mas aquela partida era a
verdadeira despedida. Sabia no íntimo que nada a impediria de realizar a
vontade da avó e agora a sua: haveria de ter uma vida feliz.
Entrou no carro e pegou no manuscrito
número três. Antes de chegar a casa da avó, que agora era sua, fez duas
paragens. Já na cozinha, virada para o balcão, onde sempre vira a sua avó ao
longo de tantos anos, era ela que usava o avental branco. Ao seu lado estava o
açúcar, os ovos e a farinha, os ingredientes nada secretos do tão apreciado
pão-de-ló da avó. Fechou os olhos e começou a trautear a tal melodia acompanhada
por uma sucessão de palavras que pareciam ter vida própria. Primeiro aos
soluços e depois escorrendo em torrente, a melodia saía igual à que ouvira da
sua avó anos a fio.
Agora tudo era claro: as quantidades e
porções, as vezes que mexia e em que sentido, a temperatura do forno, o tempo
de cozedura, a maneira específica de forrar a forma com o papel de almaço...tudo
estava explicado na canção da sua mãe duas vezes.
«O segredo vive!», gritou cheia de esperança.
FIM
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