A mensagem na garrafa em três atos

A mensagem na garrafa em três atos

Ato 1 - Gargalo

Algo se perdeu nos últimos anos. Pelo menos algo mudou e como qualquer outra mudança, esta traz consigo pontos positivos e pontos negativos. Agora todos sabem tudo sobre todos e todos julgam saber tudo sobre tudo. Na verdade está tudo à distância mínima de um clique ou para ser ultra moderno à distância de um toque num ecrã ou de um comando de voz. É muito bom poder saber tudo sobre a cidade de Gorgora, situada nas margens do lago Tana, sem nunca lá ter ido, percorrendo virtualmente as lendas do Preste João. Não escondo que me sinto bem com o uso que faço das tecnologias e tento colocá-las a serviço do que quero fazer, tornando a minha vida mais fácil. No entanto, sinto falta da incerteza; sinto falta de não sentir falta de estar ligado à corrente ou a uma qualquer nuvem, de ter medo de ficar sem bateria de um aparelho qualquer, de me esquecer das inúmeras palavras-passe e inúmeros códigos que nos obrigamos a decorar. Hoje quando nos preparamos para contar alguma coisa a alguém o mais provável é que nos digam ah, eu sei, eu vi no facebook, e regressam os olhos encandeados pela luz do ecrã, como borboletas da noite em voos suicidas à volta das lâmpadas. Já não nos querem ouvir…já sabem tudo. Hoje já não há mistério, ou pelo menos já não há o desejo de o descobrir.

Ato 2 - Bojo

Sinto falta de não haver distrações na mesa e sinto falta, é claro, de me sentir inteiro mesmo sem telemóvel, mesmo sem dar conta do que fiz por meio de uma fotografia no instagram. Antes, as pessoas preocupavam-se em primeiro lugar em viver e depois destinavam uns anos da sua vida para a sua biografia, escrevendo os episódios mais marcantes e que tinham sobrevivido ao filtro do tempo. Hoje atualiza-se ao segundo a biografia para sempre inacabada, não prestando a devida atenção aos momentos que se estão a viver, nem às pessoas que estão a viver esses momentos connosco. Talvez a explicação seja a dificuldade das gerações mais novas conseguirem visualizar os seus anos de reforma, e saibam que não terão tempo para grandes escritas ou memórias nessa altura. Mas isto também pode ser uma grande desculpa e a verdade seja, afinal, a necessidade constante de distração.

Ato 3 - Base

Há que lembrar que viver é ter controlo do que fazemos, é conduzir a nossa vida confortável com as escolhas que fazemos. Há que lembrar que não devemos reservar para estranhos aquilo que deveríamos dizer, fazer e mostrar aos que nos são próximos. Há que lembrar que a vida é sempre melhor, ou pelo menos mais honesta, quando é vista de forma desarmada e não por intermédio de uma lente qualquer. Há que lembrar que a melhor fotografia é tirada com os nossos olhos, dispensando filtros ou ajustes Há que lembrar que a melhor forma de nos conhecermos e de conhecermos o nosso mundo é prestando verdadeiramente a atenção ao que vemos, ouvimos, cheiramos e ao que beijamos: só assim se tornam imortais.

Mas, o que sei eu sobre isto tudo? O que eu queria mesmo era estar nas margens do lago Tana, despido de gadgets e ligações a nuvens, a escrever uma mensagem num papiro. Depois enrolava-o, introduzia-o pelo gargalo e ficava a vê-lo passar pelo bojo até assentar na base da garrafa de vidro transparente. Depois atirava a garrafa ao lago e ficava sentado, numa pedra qualquer, à espera da resposta à minha mensagem.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

(A)Mar

#Paris