Crónicas antigas "Voando numa semente de um dente-de-leão"
O vento ainda era frio, mas, às
escondidas, a natureza já se espreguiçava num longo acordar. Por todo lado o ar
trazia já a azáfama da bicharada: formigas encarreiradas carregando mundos;
abelhas namoriscando todas as flores que encontravam, competindo com borboletas
floridas pelo melhor lugar; lagartixas espraiando nos ainda fracos raios de
sol; escaravelhos de todas as cores e feitios correm apressados de um lado para
o outro…
Com este acordar cíclico, mas
no entanto sempre surpreendente, chegam também as cores do que outrora tinha
sido monótono e sombrio; chega também o riso das crianças. É hora de ir brincar
lá para fora, depois de dias de uma aparente hibernação.
Como ela gostava daqueles dias
de sol à tardinha e de percorrer com as mãos as pontas ainda húmidas das ervas.
De repente parou. Acho que viu alguma coisa especial: algum bicho para qual
olha com especial atenção? Ou uma flor que terá aprisionado o seu olfato? Já
sei o que foi! Vejo agora que segura uma semente de dente-de-leão, na mão. Ela
sabe que não faz mal arrancar «Estou a ajudar a natureza!», diz ela, como se
fosse uma entendida nestas questões da biologia. O facto é que estava mesmo a
ajudar, pois estava a substituir o seu amigo vento e dar-lhe uma ajudinha.
Sem perder muito tempo e de
dente-de-leão na mão, fechou os olhos e soprou com força. É assim que se pedem
os desejos: fecha-se os olhos e guarda-se todos os nossos sonhos nos nossos
pulmões. Por breves momentos tudo fica suspenso à nossa volta e até a natureza
parece querer esperar, curiosa por saber o que vai dentro de nós. Depois tudo
acelera e à medida que libertamos o ar aprisionado nos pulmões, vamos
projetando naquela semente de flor todas as nossas expetativas e sonhos.
Abrimos os olhos e esperamos que a realidade à nossa volta esteja diferente,
como se uma pequena semente de dente-de-leão fosse capaz de fazer o que muitas
vezes nós não conseguimos ou não temos coragem. Mas nem por isso deixamos de
soprar: é isso que nos torna humanos, ou seja, a nossa capacidade de sonhar.
E ela sabia disso. Com o seu
sonho preparado, soprou como sempre soprava e deixou-se levar pela sua
imaginação. Consigo ver pelo seu rosto que ela vai à boleia do seu sonho,
agarrando-se a uma das sementes de dente-de-leão. Deixou-se arrastar pelo seu
amigo vento, sem querer a responsabilidade de escolher o seu caminho. Ainda era
cedo: primeiro é preciso sonhar, construir castelos impossíveis, brincadeiras
tontas e dizer coisas sem sentido. Só depois disso, muito depois disso é que é
preciso acordar para perseguir os nossos sonhos.
Ainda era tempo de sonhar para
ela: sentia-se bem, sentia-se leve, sem peso, a confiar em quem a levava pela
mão, a confiar na natureza e no seu amigo vento. De olhos fechados, sobrevoou
os campos, ainda verdes por ainda não terem sido beijados de forma intensa pelo
sol; sobrevoou pelas copas das árvores ainda a recuperar as cores, que se
encontravam povoadas pelo chilrear de pequenos pardais que por ali
namoriscavam; sobrevoou pelo rio e passou levemente a mão pelas suas águas
frescas, como se quisesse fazer desenhos na sua superfície. Depois abriu os
olhos, e aqueles breves segundos, duraram horas. Horas felizes com toda a
certeza.
Não sei ao certo com o que sonhava, apenas
posso imaginar o significado daquele sorriso enquanto soprava a semente de
dente-de-leão.
Diz o poeta que o sonho comanda
a vida. Quero acreditar que sim, mas para mim já acho suficiente que a torne
suportável.
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