Crónicas antigas - No precipício de uma folha em branco

No precipício de uma folha em branco 

João Cunha Silva

A folha em branco causa-me sempre sentimentos controversos.
Por um lado há a promessa da ilusão do tudo possível, da criação de mundos novos, de novas ideias. No fundo, efervescências em forma de palavras que se apressam por preencher todos os espaços que encontram em branco, numa correria desvairada, sem eira nem beira, à procura de sentido.
Por outro lado, há o desmaio de nada conseguir escrever; de encontrar uma porta fechada, por onde nada entra e nada sai e sem puxador e fechadura à vista; um frio vazio que congela os dedos e os impede de escrever; uma longa pausa que parece eterna.
Mas quando tudo parece perdido, uma pequena luz se vê no meio daquele vazio e a folha branca é agora um recreio coberto de neve onde crianças, às gargalhadas, atiram bolas e de costas deitadas, desenham anjos no chão, abrindo e fechando os braços e as pernas. As palavras, caem como flocos e amontoam-se em bonecos de neve ou em iglôs improvisados.
Mas aqui, nesta terra de pés molhados pelo rio, não há neve, e de olhos presos na minha folha em branco, fico de novo parado perante o abismo de nada conseguir escrever. De novo o frio do vazio, tanto frio que a folha encharcada pela neve derretida se transforma numa pista de gelo. Mais possibilidades a surgir à frente dos meus olhos e, de súbito, as palavras de mãos dadas com uma bailarina de cabelo imaculadamente penteado fazem piruetas, rodopios, saltos acrobáticos e aterragens destemidas ao som de uma música que parece seguir todos os seus movimentos. Escrevo nesse ritmo frenético, tentando acompanhar a música, enquanto a minha bailarina de patins, voando sobre a minha folha feita pista, faz um levantamento e ergue as minhas palavras enquanto rodopia sobre o seu próprio corpo. A música acaba. A bailarina curva-se para receber o aplauso e as minhas palavras ficam marcadas na folha pelas lâminas dos seus patins. Sai a bailarina e saio eu de cena. A minha presença já não é necessária, agora que as palavras se recusam a sair da folha e parecem acomodar-se aos lugares que lhe destinei. Polvilhadas ao sabor do vento ou cortadas pelas lâminas dos patins da bailarina, foram ocupando o seu lugar de forma ordeira: letra a letra; palavra a palavra; frase a frase; linha a linha. Como lenha amontoada pronta a ser queimada numa noite fria de inverno.
Para que servirão as palavras que preenchem uma folha em branco, se não for para nos aquecer?
Fica a promessa que este espaço nunca ficará em branco a partir de agora. Será sempre preenchido pelas minhas palavras, palavras escolhidas por mim ou palavras que me escolham a mim, tanto faz. Podem ser contos, crónicas ou mesmo palavras de urgência que o momento não consegue calar. Fica também a promessa que serão sempre palavras livres, sem algemas ou prisões, porque as palavras são a nossa liberdade e a liberdade só é verdadeira, se existir a possibilidade de as colocar numa folha em branco, de acordo com a nossa vontade e engenho.

Je suis Charlie!

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