Crónicas antigas - A Mesa Do Café Da Rua 38


Todas as manhãs o mesmo ritual. Obedecendo fielmente a uma sucessão de movimentos cristalizados pela repetição e pela ordem. Um rito…uma oferenda a um Deus maior. Passo a passo, mecânico, numa mnemónica aprendida num tempo ou então no seu templo. Entrava; sentava-se; pousava o chapéu na mesa; pedia o café com um gesto seco; agitava de forma também maquinal a saqueta do açúcar. Pegava na colher e mexia o café somente duas vezes, como se no seu íntimo não desejasse uma dissolução completa e secretamente procurasse o prazer final do açúcar restante. No entanto, não me lembro de o ver pegar na chávena para beber. A partir daí, desligava a corrente do real, como se entrasse numa outra dimensão. E eu com ele. Todo ele absorto, indiferente à vozearia das restantes mesas e ao meu olhar fixo e pouco dissimulado. Abria o caderno preto de modo cerimonioso, olhava por momentos pela janela, não parecendo importar-se com o seu próprio reflexo que turvava a realidade exterior. Baixava a cabeça como numa vénia e a sua caneta dourada parecia ganhar vontade própria. A escrita fluía num ritmo febril, num frenesim galopante e descontrolado. Devorava folha atrás de folha. A caneta, raspava a página de um lado para o outro, mais parecendo um tear, juntando as linhas escritas numa mancha de texto opaca, que depressa desaparecia com o virar repentino da página.
Permanecia exatamente sete minutos naquela mesa ao lado da minha, naquele café onde eu próprio me encontrava, naquela rua 38. Sempre tão perto, diariamente tão chegado e no entanto só lhe conhecia os gestos. Não sabia o seu nome, nem me lembro de alguma vez ter ouvido a sua voz. (Deduzo que tenha uma ou várias até…) Da minha mesa, vítima da minha própria rotina, observava aquela celebração diária de forma mística e memorizei, gesto a gesto, os passos daquele sujeito magro, sempre de fato preto, de óculos redondos, de chapéu, também preto, pousado na mesa. Aqueles sete minutos, cronometrados, robóticos; eram mais do que sete minutos. Eram um tempo parado no tempo.

Fechava o caderno, guardava a caneta no bolso do casaco e levantava-se. Deixava o valor certo do café na mesa; punha o chapéu na cabeça e saía sem pronunciar um único som. Durante todo dia, a mesa permanecia órfã do seu dono e ninguém ousava sentar-se naquela cadeira. Havia um respeito inexplicável por aquele momento sacro, por aquele lugar e por aquela pessoa, que podia ser qualquer Pessoa.

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