O título é… esqueci-me
Agora conto eu (texto publicado no Tribuna Jornal a 30/05/2014, ironicamente não assinado por esquecimento.)
João Cunha Silva
O título é… esqueci-me
Sempre fui muito distraído. Ou me
esqueço da luz acesa, ou não me lembro onde deixei as chaves do carro, ou me
esqueço da carteira, ou… sei lá… agora mesmo esqueci-me do que ia dizer… está
aqui na ponta da língua, mas parece que se recusa a sair. Agora também já não
importa. Sempre vivi desta forma, esquecendo-me das coisas, perdendo outras,
encontrando-as depois, principalmente quando já não preciso delas. «Acontece…»,
costumava eu dizer! Pois, o que mais fazer nestas situações… não se pode mesmo fazer
nada e até conseguia viver assim. Não me incomodava assim tanto. Obrigava-me a
um difícil exercício mental e a um estado de alerta permanente, despertadores e
alarmes em duplicado. Mas com meia dúzia de truques na manga, o dia-a-dia
tornava-se suportável e ninguém se apercebia, a não ser um número muito
reduzido de pessoas muito próximas. Descia assim a rua como sempre fiz. A chave
do carro no bolso da frente, os óculos mesmo à frente dos olhos, a carteira no
bolso de trás… e sim tinha apagado a luz antes de sair de casa, foi necessário
confirmar duas vezes, mas estava apagada. Confirmadíssimo. Antes que me esqueça
do que estava a contar… ah! Estava a descer a rua sem me ter esquecido de nada,
confiante com tal feito, que não deve ser considerado menor dadas as
circunstâncias. Ia eu entretido no diálogo com a minha própria memória, quando
de repente sou abordado, por um aparente estranho.
- Olá, já não te via há muito
tempo!
- Pois é… já lá vão alguns anos…
desde a escola secundária.
Sabia quem ele era, mas o nome…
estava na ponta da língua, mas simplesmente se recusava a sair, mais uma vez! Não
querendo dar uma ideia de fraqueza demonstrando uma senilidade prematura,
disfarcei, a partir daquele momento com o uso do pronome, que nestes casos, dá
cá um jeito. «Tu isto…tu aquilo…tu lembraste…» O certo é que a conversa seguiu,
fiquei a saber em género de CV o seu percurso de vida, desde o momento em perdemos
a convivência diária nos bancos da escola secundária… mas o nome, nem vê-lo. Ele
falava e eu acenava com a cabeça sempre numa luta interior para me lembrar do
nome do sujeito. Também não sei se ele se recordaria do meu, nunca o disse na
conversa. Ele subiu e eu continuei a descer a rua ainda a pensar no abraço com
que nos tínhamos despedido. Entrei no café e pedi a minha dose de cafeína
diária acompanhada por uma bela nata. Continuei com o nome dele à porta da
memória, mas relutantemente agarrado à soleira sem se querer mexer. O líquido
quente despertou-me o cérebro ensonado, como que iluminando o caminho por onde
passava. O clique final deu-se com o polvilhar da canela. Sentidos todos despertos. «- Ah, grande camelo!» Seguiu-se uma vã tentativa de apalpar a
carteira no bolso! Aqui, juro que não sei se me referia a mim, ou ao “zé
mãozinhas” … pois não me lembro… está claro. O nome veio jorrado cá para fora,
assim como a lembrança de que ninguém tirava a carteira do bolso dos outros com
a classe do Zé, disso eu devia ter-me lembrado.
Sabia agora que não me tinha esquecido da carteira em casa.
João Cunha Silva

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